Surpresas de Natal
 



Contos

Surpresas de Natal

Marlene Netto


Tive um calafrio ao saber que a festa de natal seria na casa de tio Aníbal. Jurei que não iria de jeito nenhum. Mas fui, afinal toda a família estaria reunida lá. O tio até que é um homem interessante e tal, mas a nova mulher dele, a Lúcia, tem uma energia negativa. Ela diz ser mística, mas na verdade deve ter parte com o coisa ruim.

O Zedair estava no banco do carona, babando. Eu fiz questão de ir dirigindo pra não pensar na sócia do capeta. Não adiantou, ela se refestelava dentro da minha cabeça. Fiquei lembrando que, no dia do aniversário da tia Amelinha, Lúcia estava entusiasmada e decidida. Convidou a família para comemorar o natal em sua casa. E com voz de taquara rachada resolveu que faríamos amigo secreto. “É bem mais econômico”, falava ela. Dizem que a gente atrai aquilo que tem medo. Deve ser verdade, porque na hora senti um pavor de tirar o papelzinho com o nome da azeda. E acabei tirando. E além do mais, ela prometeu vários quitutes, iguarias surpreendentes e presentinhos para as crianças. O povo se animou. Eu? Eu fiquei com a pulga atrás da orelha. Os meus arrepios não mentem. Essa criatura parece político antes das eleições. Parece que quer nos sugar até o último suspiro, e pra isso nos bajula.

Não sabia o que comprar, afinal, o estilo da tal pessoa é indefinido. Veste do clássico chique ao desleixada, conforme o que quer pescar para o seu deleite. Eu já li direitinho a ficha da infeliz, mas ninguém acredita em mim. Zedair diz que ela é bipolar, talvez seja também ou faz parte do pacote de ilusionista, todo mundo fica com peninha. Vive mudando de humor. Minha reza era pra que ela, na noite de Natal, estivesse tranquila. Acabei, de última hora e com dó, pegando uma caixa de bombons finos que eu havia comprado para eu comer. Paciência, depois compraria outra.

Logo que chegamos, ela veio nos recepcionar. O vestido era preto, os olhos faiscantes, de um brilho sobrenatural, e estava de braços dados com o tio Aníbal, ele parecia anestesiado. Sinceramente nem esperava tal atitude, mas logo surgiu o pesadelo. Trouxe a sobremesa, queridinha? Ela falou em tom nada agradável, diferente de todas as outras vezes, que a maciez da voz, apesar de irritante, comprava a todos. Não havia levado. Minha cabeça estava tão embaralhada com a ideia de chegar até ali, que acabei esquecendo o doce dentro da geladeira. O Zedair não foi capaz de me lembrar. Mas o tio Aníbal me tirou daquela situação antes mesmo de eu responder. De repente ele, ao encontrar meu olhar, me deu um abraço tão apertado e mudo, que sei direitinho que ele abraçava também a minha mãe, irmã dele, que há dois meses tinha ido fazer festa no céu. Pelo menos com isso ele pareceu acordar do transe.

Fomos os últimos a chegar. Quando entramos, Lúcia nos dirigiu à mesa. Tudo era estranho, os alimentos estavam cobertos com panos pretos, e não se via enfeite algum que lembrasse o natal. O cheiro não era nada agradável. Sentamos e a dona da casa levantou um por um dos panos. Tive náuseas, muitos taparam os olhos. No lugar de um peru havia uma galinha com cabeça e pés, no lugar do leitão um bode inteiro.

Lúcia apagou as luzes e um burburinho efervesceu. Mas ela nos surpreendeu ainda mais: com um fósforo ateou fogo nas velas de sete dias que estavam sobre a mesa. A claridade do fogo iluminou o seu rosto e ela falou em voz metálica e autoritária: “Comam, comam, crianças, as vossas energias me dão vida!”, por um momento tivemos a impressão de estarmos diante de uma assombração. Zedair correu a acender as luzes, tia Neca e tia Amelinha desmaiaram quando, já na claridade, viram que as mãos e os pés de Lúcia eram de bode. Houve novo burburinho, desta vez mais intenso. O tio Aníbal pedia calma, mas ninguém ouvia. As crianças gritavam, as mulheres pegavam suas bolsas, os homens balançavam as cabeças e todos se dirigiam à porta. Enquanto todos fugiam, Lúcia se lambuzava toda comendo a galinha que destrinchava com as
patas.

Eu puxei o braço do Zedair, dei de mão na caixa de bombons finos e saímos.

Pelo menos algo doce, naquela noite de Natal, não me faltou.



***

Marlene Netto, gaúcha, artesã, contadora de histórias, ama ler e escrever. Estreiou como autora em 2018, participando do livro de contos "Transgressões". Está sempre em busca de aperfeiçoamento realizando cursos relacionado com a oralidade e a escrita. Participou do Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.


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